Em certas ocasiões, Lícia usa piteira. Não pelo efeito femme fatale do acessório, mas pelo hábito de usar luvas e pela estética que surge entre mãos cobertas, boca carnuda e fumaça. Uma espécie de fórmula de atração para noites nevadas.
Luvas pretas, brancas, cor de sua pele, rubi… Sua preferida é verde esmeralda e aveludada.
Cada uma delas equivale a uma personagem diferente. Para cada máscara, uma luva escondendo as veias. Para cada “baile”, uma proteção.
Com as luvas, também esconde algumas de suas cicatrizes.
Duas delas atravessavam o pulso. As outras, se espalham pelo corpo.
A maioria dos clientes reage friamente a suas cicatrizes. Mas suas mãos são delicadas, douradas e com veias finamente avermelhadas borbulhando.
Com certo receio de expor suas cicatrizes, ela reconhece quando é mais adequado ter as mãos desnudas.
Ela aprendeu que suas marcas trariam histórias tristes para as mentes dos mais fracos, e histórias intensas para a cabeça dos aventureiros, mitológicos e contraventores. Teve uma amiga tão intensa quanto ela que dizia: só os heróis tem cicatrizes, Lícia!
O mais curioso caso em relação as suas cicatrizes expostas foi o que teve com um cliente intelectual. Viveram em um mesmo hotel por 2 meses. Mais um caso fugaz em sua vida. Concretamente efêmero, sem deixar resquícios. Esquecido rapidamente, o jogo durou até um deles pegar suas malas e partir do espaço compartilhado.
Lícia foi a primeira a deixar suas cartas na mesa e encerrar a jogatina amorosa. Sabia que nestes casos prolongados deveria ser sábia o suficiente para sair antes de ser deixada. Saiu do hotel na hora exata, e transformou o encontro em uma efemeridade cotidiana qualquer.
Na última noite de encontro entre eles, Lícia sabia que não o voltaria a ver; ele, mais um cliente momentâneo, não tinha idéia de que poderia perder o contato com ela definitivamente. Ela costumava não dizer quando iria embora, justamente para deixar rastros, algo para farejar quando sentisse necessidade de voltar.
No último dia de encontro entre eles, no café do hotel, ele estava lendo, quando ela chegou.
Ele tomava um whisky; ela pediu um conhaque.
Ele lia algo sobre a arte de Milo Manara. Eram ilustrações de mulheres exuberantes, com gestos de sensuais meninas lisérgicas. Lícia observava as imagens em um misto de reticência e atração. Como sua tinha libido estava sempre a postos, era um risco aguçar o olhar daquela forma. Ela preparava-se para partir, precisava concentrar-se em seu velado ritual de despedida.
Entardecia, a cidade estava esvaziada e garoava.
Todo o cinza do concreto molhado ia embora, com a luz do entardecer crepuscular.
Logo que Lícia senta na mesa, o intelectual, ainda calado, imerso em sua leitura, puxa um pequeno livro, empilhado entre os outros que lia. Ele oferece o livro a Lícia, um presente que ela não costumava ganhar, nem dar valor.
O nome do livro era “A mulher mais linda da cidade”. Ele a entrega o presente, dizendo que só queria estar um pouco com ela naquele dia, porque lembrava dos encontros do escritor do livro com a mulher descrita no conto que dá nome à edição. “A mulher mais linda da cidade” era uma melancólica bela mulher, com a cara mutilada. Era uma criatura inquieta que se automutilava com freqüência.
Para aquele intelectual no seu caminho, um confessor constante, reler aquele conto o teria feito lembrar Lícia, e sentir que poderia fazer certas perguntas a ela.
Lícia entendia muito bem dos homens de tipo “confessor”.
Eram fartos da vida e não se importavam com opiniões aparentemente desatentas, como as de Lícia. Viviam puramente sua razão e sua egolatria, mas sabiam confessar suas fraquezas para tentar seduzir mulheres de autoestima e caráter rigidamente lapidados. Foi nesse seu impulso de coragem que o tal intelectual foi longe demais, indagando Lícia cruelmente:
– Nunca entendi suas cicatrizes.
Lícia, então, sorri com os olhos, enquanto acaricia sua taça de conhaque.Espera alguns segundos, até tomar os primeiros goles, e diz que precisava ter outra oportunidade para contar a história de cada uma delas. Tinha hora marcada com uma amiga e não poderia atrasar. Infelizmente, Lícia precisava ir.
Sem responder às ânsias daquele sinuoso confessor, ela o deixa.
Estava sendo fisgada pela densidade dele. Pela forma densa dele sentir. E aquilo começava a molhar suas asas. E deixa-las mais pesadas do que o necessário! Lícia ainda tinha estrada pela frente. Estrada de partida, de fuga depois da tempestade e da garoa crepuscular!
Ela precisava deixá-lo para voltar a sentir superficialidades, levezas sustentáveis aos seus longos vôos de pés fincados no seu tapete vermelho.
No mesmo dia, Lícia deixa o hotel.
Já passou a hora do crepúsculo. E a garoa já se transformara. Já era vapor diário de depois de tempestade.
É noite. Lícia passa pelo bar do hotel assim que seu cliente sobe para o quarto.
Ela sabia seus horários, sempre previsíveis ações de homem metódico e regrado.
Mais um confessor havia perdido Lícia para o tempo.
Perdeu suas respostas por querer saber demais sobre cicatrizes que só o tempo poderia responder.
A superficialidade de Lícia era, geralmente, sua mais apropriada aparência, era visível, nada mais. Ela aprendeu que exatamente daí viriam todas as suas decisões. Se fosse sufocada de questionamentos, aí sim deixaria seu amantes ao relento da dúvida.
Sabia que responder demais era a forma mais arriscada de gerar apego, sentimento que deixa aos frágeis inconfessos e aos sedutores artificiais.
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